sábado, 26 de fevereiro de 2011

Deontologia Profissional: Perspectivas de um Professor/Formador

O paradigma que, universalmente, se pretende implementar, desenvolver e consolidar, ostenta, para já, um nome e apelidos poderosíssimos - Globalização: Económica, Científica e Tecnológica. O importante modelo, que assim o querem sustentar, certamente, é bem-vindo, porque grande parte da vida das pessoas, das comunidades e do mundo, cada vez mais, dele dependem.
Por isso se pode enaltecer todos aqueles que, efectivamente, contribuem para que todos os outros possam beneficiar deste universal processo, se possível, a um nível o mais igualitário, isto é, que todos, independentemente da sua condição financeira, estatutária, política, étnica ou outra, beneficiem dos progressos que este novo paradigma vai alcançando, quer quanto a valores materiais, necessários a uma boa qualidade de vida física e Sócio-Profissional, quer quanto às oportunidades de acesso a outros valores que os bens materiais podem proporcionar.
O valor educação/formação é indissociável daquela qualidade de vida que todo o cidadão tem o direito de aceder e todo o responsável político tem o dever indeclinável de promover globalmente, sem discriminações, sem elitismos, sem influências, obviamente, a partir da educação, porque: “A qualidade de vida está directamente relacionada às condições em que essa via se desenvolve: medicina, psicologia, teologia, filosofia, engenharia, agricultura indústrias, desenvolvem actualmente um esforço ingente para atender ao clamor geral por melhores condições de vida.” (FINKLER, 1994:8, in PASCOAL, 2004:38)
Nenhum povo, nenhum país, nenhuma cultura, nenhuma civilização poderão desenvolver-se e enobrecer-se, respectivamente, sem este outro ilustre paradigma, tantas vezes e por tantos responsáveis esquecido ou, no mínimo, desvalorizado ao longo dos tempos: Educação/formação para a convivencialidade societária, no respeito, na tolerância, na solidariedade e cooperação entre pessoas, povos e nações, porque: “Educação é formação de todos, em todas as oportunidades e espaços do quotidiano, ao longo da vida. (…) a educação torna-se efectivamente permanente: educação para uma vida cultural e socialmente multi-activa em qualquer fase do percurso da vida dos indivíduos.” (PINTO, 2004:151)
Podem-se construir, implementar e estabilizar os paradigmas da objectividade, da quantificação, da reversibilidade, da previsibilidade, da universalização das leis científicas, enfim, com todas as características das denominadas Ciências Exactas, porém, o Mundo não terá paz enquanto os paradigmas das Ciências Sociais e Humanas, da Religião, da Filosofia, e das transcendências (sem dogmas) não forem assertiva e publicamente reconhecidos e integrantes da humanidade.
Com polémicas ou sem elas, goste-se ou não, afirme--se ou negue-se, o homem não terá, apenas, uma composição física, mensurável, determinada, concreta e objectiva, nem só sentidos, porque para além destas características e faculdades, respectivamente, outras imateriais existem: “Pensamentos e raciocínios são sentidos, porém mais sofisticados que os da visão, audição, olfacto, tacto, gosto, uma vez que são os atributos e determinantes maiores e essenciais da própria vida humana.” (COLETA, 2005:14)
O insondável continua a existir no homem e incomoda muitos técnicos, cientistas, materialistas, laicos, intelectuais e outras elites, obviamente, salvo honrosas excepções, entre aqueles. O contrário é, igualmente, verdade, a dimensão físico-material existe, é reconhecida universalmente, também por muitos daqueles que valorizam mais a dimensão imaterial, o psíquico, o sentimento, a crença convicta numa outra existência e transcendência, o tal insondável, o mistério que continua a ser o homem, dotado de alma e corpo, que continua angustiado porque ainda não sabe para onde vai.
Mas estes conhecimentos ou sensações, ou emoções, ou sentimentos, ou ainda, convicções profundas, também se ensinam (?), concretamente no sentido em que: “Ensinar é a actividade pela qual o professor, através de métodos adequados, orientará a aprendizagem dos alunos.” (HAYDT, 1997:12), melhor ainda, também se aprendem (?). Se a resposta for afirmativa, quais os conteúdos, que estratégias, que metodologias, que pedagogias/andragogias, como avaliar a interiorização de tais competências e a sua prática na vida concreta, objectiva, material e terrena?
E que professores/formadores são necessários em termos da sua preparação, praxis e ética ou deontologia profissionais se lhes deve exigir? Pode-se parar por aqui, porque de contrário os problemas avolumam-se e agravam-se ao ponto de se ter que rejeitar toda e qualquer abordagem. E se o mundo material, natural e/ou artificialmente construído pelo homem, já é complexo, pese embora a mentalidade positivista ter pretensões de os resolver, outro tanto, seguramente, não se verifica com o mundo sobrenatural.
Estes dois mundos existem: o material e o imaterial; o físico e o espiritual; o fenoménico e o numénico, o que se quantifica e o que se qualifica; o que se objectiva e o que se subjectiva. Aceitando, sem preconceitos, sem superioridades, estas duas realidades, focalize-se a reflexão no mundo dos ideais, dos valores, da superior condição humana, assente na trilogia: Dignidade – Dever – Divindade. São três aspectos que melhor podem caracterizar o homem, concretamente o homem que se considera titular de duas partes, em que uma, para o crente, é constituída à imagem e semelhança do seu Criador, isto é, da Divindade esta, por sua vez, causa primeira e última da existência daquele ser, ainda misterioso, insondável e fascinante que é o homem; outra, a parte física, composta de matéria que morre.
Com a dignidade que lhe é própria, no sentido da respeitabilidade, da coerência e da tolerância e, usando do privilégio que é a sua transcendência para a qual envia esta dimensão, também única, a da espiritualidade, no sentido do encontro com a perfeição da Divindade, aborde-se, então, a partir da dimensão educacional do homem, o papel de professor/formador o que significa, de facto, este ideal do Dever, precisamente no contexto de um sistema educativo globalizado, integral, aceitando como inevitável o ponto de partida em que a humanidade se encontra: ideologicamente materializada.
A dimensão educacional do homem implica, afinal, uma atitude facilitadora e receptiva para novas técnicas educativas, novas pedagogias/andragogias, novas didácticas, novas metodologias, enfim, novos objectivos. A predisposição e abertura ao ainda não científico e ao não cognitivo são um contributo importante para novas estratégias, novos compromissos.
A tolerância do cidadão-cientista deve ser correlativa com a sua humildade intelectual e, nesse sentido, pode aceitar, sem o preconceito positivista, outras abordagens não tradicionais mas, eventualmente, interessantes e até proveitosas na perspectiva educativa.
Uma nova “pedagogia não cognitiva” poderá constituir uma alternativa credível para a construção de uma sociedade mais humanista, mais afectiva e, nesta fase da evolução do conhecimento técnico-científico, que continua impotente para resolver determinados problemas do foro mais íntimo e dos valores mais ambicionados pelo homem, por que não dar uma oportunidade a outras leituras alternativas? Pode (e/ou deve) o professor/formador enveredar por tais alternativas?
Com efeito, considera-se neste trabalho, cujo tema central é a “Ética do Professor/Formador”, a colaboração que ele poderá (e deverá) dar na preparação de um novo cidadão, que seja capaz de contribuir para a resolução de questões de natureza algo inefável e abstracta, mas que influenciam a vida concreta, material e objectiva do ser humano. Ser capaz de avaliar todas as hipóteses possíveis: as tradicionais e as que têm cobertura científica, mas também todas aquelas que podem constituir alternativa e caminho para as soluções, que tardam em aparecer, para os problemas sociais.
 Será no âmbito da cooperação, entre os vários níveis do conhecimento, que se regista o aparecimento de uma nova “pedagogia não cognitiva” a qual possibilita a análise de diferentes hipóteses de solução para os vários problemas que obstaculizam o objectivo pelo qual o homem vem lutando: viver numa sociedade mais feliz, humanista, solidária, justa e segura.
Num contexto ecuménico tão complexo, o professor/formador, qualquer que seja o nível de ensino/formação, certamente tem dificuldades em posicionar-se cultural, científica e tecnicamente, face aos seus alunos mas, a problematização da sua posição é mais evidente quando é confrontado com decisões que envolvem o domínio ético, porque entre a competência profissional, a observação das normas jurídicas aplicáveis, os legítimos interesses dos alunos/formandos e respectivos encarregados de educação, a imagem da Instituição em que está integrado e as normas deontológicas, num mundo de situações, é susceptível vislumbrar-se, como é verdadeiramente pertinente, dir-se-ia, eticamente exigível que todos estejam preparados para a vida real que, tanto dentro como fora das escolas, existe e, nesse sentido, se acolhe bem a estratégia segundo a qual: “A orientação prática prepara de forma mais concreta para a futura vida profissional, sugerindo pistas acerca do modo de relacionar e aplicar conhecimentos e, também, formas de agir e de resolver situações profissionais.” (REGO, 2003:52)
Resulta que, um posicionamento deontológico do professor/formador pressupõe a sua total abertura para acolher dos seus alunos e encarregados de educação, as sugestões que sejam do interesse destes intervenientes, no que se relaciona com o estudo e prática de matérias que eles considerem como as mais necessárias para as suas futuras actividades profissionais, respeitando, obviamente, um curriculum mínimo nacional, fixado pelas entidades competentes.
Com igual posicionamento, ético-profissional, o professor/formador deve, em princípio, e havendo acordo entre os alunos, negociar com estes, no início de cada ano escolar, os instrumentos e ponderações para as avaliações, naturalmente no respeito por critérios de justiça e num quadro de absoluta legalidade e lealdade, buscando, por esta forma, uma avaliação do aluno, o mais justa e abrangente possíveis: “Para realizar uma avaliação integral do aluno, isto é, para avaliar as várias dimensões do seu comportamento, é necessário o uso combinado de várias técnicas e instrumentos de avaliação, que devem ser relacionados tendo em vista os objectivos propostos.” (HAYDT, 1997:313)
E se para o aluno/formando, a avaliação deve constituir-se como estímulo, informação, orientação e prémio, e em circunstância alguma entendida como castigo ou rotulagem de incompetência ou atraso mental; para o professor/formador, trata-se de uma função complexa que lhe proporciona oportunidades únicas para aperfeiçoar seus procedimentos de ensino/orientação/tutoria, com um sentido orientador.
 Em suma, sendo uma função complexa ela é nobre porque lhe proporciona a realização da sua própria introspecção: “…a auto-avaliação efectuada pelo professor é o seu momento de reflexão mais intensa, de encontro com as suas verdades, o seu conhecimento e a realidade caracterizada então pela sua prática com um determinado grupo de alunos.” (KENSKI, in HAYDT, 1997:319, citada por VEIGA, 1988:131-43)
A responsabilidade de quem avalia é inquestionável porque de uma avaliação justa ou injusta pode depender o futuro de um jovem, de um profissional na sua carreira, da evolução individual e/ou colectiva de um grupo. Avaliar é julgar e quem julga deve munir-se de todos os meios ao seu alcance, legais, irrefutáveis, verdadeiros e justos, com os quais formará, conscientemente, a convicção de que está a ser correcto e justo.
A Deontologia Profissional do professor/formador é fundamental no julgamento que vai fazendo dos seus alunos/formandos e, tal como o juiz em processo judicial que julga a partir dos factos, inequivocamente provados e da convicção que forma em sua consciência, sobre o caso concreto em apreciação, podendo resultar danos incalculáveis, injustiças e consequências irreparáveis ao condenar um inocente, também o professor/formador será responsabilizado pelo futuro de uma pessoa, de um grupo profissional e até de uma sociedade inteira.
Uma ética da justiça no sistema educativo, centralizada no aluno e no processo de avaliação é essencial para a formação de cidadãos íntegros, competentes e justos. Na formação dos cidadãos do futuro, não há caminho que não tenha que passar pela trilogia: Educação-Aluno-Professor/Formador.
São estes os elementos fundamentais para uma nova sociedade. A responsabilidade é pesada para todos: sistema educativo nos seus organismos competentes; alunos/formandos quanto ao seu empenhamento; professores/formadores ético-pedagogicamente competentes; encarregados de educação vigilantes e cooperantes; sociedade esclarecida e actuante. Bolonha e o Ensino Superior não devem ser ignorados.

Bibliografia

BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2002) Silvestre Pinheiro Ferreira: Paladino dos Direitos Humanos no Espaço Luso-Brasileiro, Dissertação de Mestrado, Braga, Universidade do Minho. (Não publicada)
COLETA, António Carlos Dela, (2005). Primeira Cartilha de Neurofisiologia Cerebral e Endócrina, Especialmente para Professores e Pais de Alunos de Escolas do Ensino Fundamental e Médio, Rio Claro, SP – Brasil: Graff Set, Gráfica e Editora
PINTO, F. Cabral, (2004). Cidadania, sistema Educativo e Cidade Educadora, Lisboa: Instituto Piaget
PASCOAL, Miriam, (2004). Qualidade de Vida e Educação, in Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas SP: PUC, Pontifícia Universidade Católica, N. 17, pp. 37-45
REGO, Arménio, (2003). Comportamentos de Cidadania Docente: na Senda da Qualidade no Ensino superior, Coimbra: Quarteto Editora
HAYDT, Regina Célia Cazaux, (1997). Curso de Didática Geral, 4ª ed. S. Paulo: Editora Ática
VEIGA, Ilma Passos A., (Coord.), (1988). Repensando a Didática. Campinas SP: Papirus

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Portugal: http://www.caminha2000.com/ (Link Cidadania)

domingo, 20 de fevereiro de 2011

O Homem: algumas das suas dimensões

“O processo educativo implica o cruzamento, o conflito, ou exige colaboração entre factores relacionados com as diversas dimensões da pessoa humana: afectiva, ética, técnica, intelectual, corpórea, avaliativa? No plano ideal, todas estas dimensões deveriam integrar-se no todo que é a personalidade humana, do ponto de vista individual e social. Portanto, ao menos como ideal, o processo educativo visa à totalidade do homem...” (GILES, 1983: 27)
O homem, esse ser, ainda misterioso em muitos dos seus aspectos e/ou dimensões, constitui, no início do século XXI e do terceiro milénio, segundo a cronologia do nosso calendário ocidental, um verdadeiro enigma e, talvez por isso mesmo, ainda não conseguiu, no território, que fisicamente habita e pensa conhecer, a estabilidade, a tranquilidade e o desenvolvimento equilibrado entre todos os indivíduos da sua própria espécie, enfim, a verdadeira dignidade da condição humana, pese embora os avanços que, relativamente à antiguidade estudada, se tenham verificado, principalmente no que respeita à esperança de vida, assim como em mais alguns aspectos da materialidade envolvente. Então, quais as razões e quais as soluções para se alterar, para melhor, a actual situação desse mesmo Homem, integrante de um mundo em alteração constante, até nos aspectos mais naturais da sua constituição. Que falta a este Homem, aparentemente, tão “poderoso?”
Se é certo que, tradicionalmente, se alia à noção de ciência, o conceito de conhecimento e, nesta perspectiva, se analisam, também, as diversas maneiras de compreender o mundo, podendo aqui destacar-se alguns dos níveis clássicos: conhecimento espontâneo ou senso comum; conhecimento científico, este com um suporte actual de técnicas, tecnologias e equipamentos e considerado como uma vitória recente da humanidade, principalmente a partir do século XVII com as revoluções Coperniciana e Galilaica.
 Também não é menos verdade que no pensamento grego da antiguidade clássica, filosofia e ciência integravam uma única árvore do saber, logo, não repugnará considerar-se a Filosofia como um, de entre outros, caminho possível para melhor se compreender o Homem e o Mundo. Como ponto prévio, a filosofia direccionar-se-á, sempre que possível, para a sua aplicação educativa e formativa do homem-cidadão: trabalho, estudo, cidadania.
Portanto, a realidade que se julga conhecer e a natureza que se pensa dominar, através da ciência e da técnica, constituem, apesar de tudo, alguns campos de acção onde o Homem se pretende impor, porém, com a agravante de, ele próprio, ainda não se conhecer verdadeiramente, o que implica que, não se conhecendo a si próprio como deveria, muito menos conhece os seus semelhantes, daí os conflitos endógenos e exógenos que continuam a existir num mundo que se pretende cada vez mais humanizado, sejam quais forem as abordagens e perspectivas que se coloquem no seu estudo.
Ao longo dos séculos, o Homem tem procurado ampliar os seus conhecimentos e aplicá-los, nem sempre na concretização de objectivos altruístas, e sem se negar a conquista de muitos benefícios materiais que, directa ou indirectamente, proporcionam à espécie humana melhores condições de vida, em aspectos visíveis para o senso-comum, não se ignora, por outro lado, as incógnitas e as dúvidas que, em boa consciência, persistem em fazer sofrer a humanidade e para as quais se sente incapacidade para as esclarecer e resolver.
Aliás, até mesmo certos fenómenos naturais constituem, ainda hoje, verdadeiros problemas sem soluções eficazes e definitivas: sismos, pluviosidades diluvianas, temperaturas insuportáveis, vulcanismo, astrologia, ambiente, entre outros, perturbam, igualmente, este mesmo Homem. Desde e até quando o Homem viverá neste universo de incertezas, de dúvidas, de conflitos, de insatisfação? E como poderá o Homem tentar resolver esta imensidade de situações para as quais nem sequer tem o aperfeiçoamento de si próprio, no sentido de vir a conseguir uma sociedade mais humana, mais justa, mais solidária, mais tolerante e feliz?
Importa discutir quais os caminhos a seguir, para que, num futuro próximo, o Homem possa beneficiar de todo o seu potencial. Certamente que não haverá processos e estratégias únicos, infalíveis e/ou predominantes. As estratégias a empregar serão, necessariamente, interdisciplinares porque: tal como o homem não terá condições para viver isolado; também um qualquer ramo do conhecimento será incapaz de encontrar e implementar as melhores soluções para os diversos problemas com que a humanidade se enfrenta actualmente: conflitos político-ideológicos; fundamentalismos diversos; proliferação incontrolada de armamento bélico; usurpação de direitos adquiridos pelo trabalho; aumento desenfreado de consumo de estupefacientes; alastramento de doenças graves; fome; crescimento do fosso entre ricos e pobres; intolerância a vários níveis em diferentes actividades e situações: sociais, económicas, culturais, políticas e estatutárias; violação sistemática dos Direitos Humanos, incluindo o desprezo pelos direitos das vítimas. Neste quadro, minimamente descrito, todos são poucos e os meios insuficientes para, isoladamente, se obterem resultados favoráveis à alteração daquelas situações.
Sabe-se que o recurso a métodos rigorosos possibilita que a ciência atinja um tipo de conhecimento sistemático, preciso e objectivo, pelo qual se descobrem relações universais e necessárias entre fenómenos. A ciência tem um carácter universal na medida em que as suas conclusões não valem, exclusivamente, para os casos observados, mas também para todos os que se assemelham.
A realidade e/ou o mundo construído pela ciência desejam a objectividade, isto é, as conclusões poderem ser verificadas por qualquer outro membro da comunidade científica, porque está estabelecido que a ciência dispõe de uma linguagem rigorosa, para que os conceitos não se apresentem ambíguos, insuficientes ou ambivalentes. Todavia, a construção e desconstrução de paradigmas científicos, sucedem-se a um ritmo cada vez maior. Já passou o período da idade média, onde, por exemplo, o geocentrismo prevaleceu como um dogma durante vários séculos, acabando por ser desmontado, na idade moderna, pela teoria heliocêntrica.
De igual forma se afigura cada vez mais necessário o contributo de outras áreas do saber que, não tendo o aval positivista, são igualmente importantes, pelo menos na tentativa de busca de novas interpretações, de novos questionamentos, de possíveis e diferentes sugestões de solução. Em início de século e de milénio, o Homem, quando esgotadas as possibilidades da ciência, e em situações-limite recorre a outros domínios de um determinado tipo de conhecimento, utilizando códigos muito específicos e ocultos para a maioria das pessoas, também denominados por mânticas.
Com que resultados científicos, não se sabe, mas com resultados adquiridos pelos próprios que, alegadamente, consideram favoráveis, isso parece acontecer. Evidentemente que entre dois extremos: ciências exactas e objectivas e conhecimentos e práticas esotéricas, existem outros meios para, pelo menos, se iniciar novos processos, designadamente na área das ciências sociais e humanas e também no domínio da sabedoria filosófica, metodologias, estratégias e tecnologias educativas.
O Homem tem de se esforçar no sentido de agir cada vez mais como um ser reflexivo e cada vez menos como um ser emotivo, para o que deverá conciliar os Quocientes de Inteligência (QI) e Emocional (QE). Ora, tal equilíbrio pode ser minimamente atingido se houver uma predisposição para a reflexão diária, dir-se-ia, permanente. É aqui que, sem menosprezo pelas ciências e outros conhecimentos, a filosofia educacional pode e deve intervir, como uma sabedoria e uma técnica moderadas, que procura consensos assentes na prudência da experiência milenar e já clássica.
E se a ciência não pode construir fórmulas rigorosas, verificáveis, experimentáveis e definitivas no que respeita à “formação do cidadão do futuro”, também não parece viável que outros conhecimentos e práticas do domínio astrológico-espírita, consigam atingir tal objectivo, então resta o contributo da reflexão filosófica. É muito frequente, utilizar-se o termo filosofia, para justificar determinadas decisões, práticas, atitudes e comportamentos, como por exemplo: uma nova filosofia de vida; uma filosofia da educação; uma filosofia da saúde; uma filosofia empresarial e por aí adiante.
O termo acaba por se vulgarizar e perder o seu significado profundo, o seu conceito socrático. Quaisquer que sejam os usos, reconhece-se, apesar de tudo, a importância da Filosofia, enquanto “algo” que, em última instância serve para justificar aquilo que as diversas ciências e conhecimentos não explicam. Será uma filosofia desta natureza que suportará o trabalho de educação e formação de um novo cidadão.
Esta dimensão racional do Homem, não poderá continuar a ser ignorada pelos cientistas, pelos técnicos, pela tecnologia e por outros domínios do conhecimento. A reflexividade humana, deverá estar presente em todas as actividades e, se se quer mudar para melhor a convivência entre os homens, cumpre preparar o futuro, a partir da formação cívica de cada indivíduo.
Será algo que se interiorizará em cada um que, permanentemente, indicará o que é certo e errado. Isto não se consegue com fórmulas científicas, ou seja, como quantificar o sentimento, a emoção, a atitude, a virtude, o erro, o comportamento, os valores referenciais da ética e da moral? Só uma praxis qualitativamente em aperfeiçoamento poderá conduzir à construção do cidadão do futuro, o qual se pretende comprometido e conivente com as soluções que visem erradicar as situações excessivas que prejudicam uns em benefício de outros. Também aqui há um défice de cidadania que não se pode escamotear mais.
É neste enquadramento de vários confrontos: homem e ambiente; sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas e/ou em vias de desenvolvimento; ricos e pobres; individualistas e colectivistas; governos e governados; patrões e empregados; crentes e ateus; religiosos e laicos; políticos e não políticos; democracia e totalitarismo; entre outros aspectos, que se joga a felicidade da humanidade. Como se pode e deve viver juntos em harmonia? Obviamente que não caberá, exclusivamente, a este ou àquele domínio do conhecimento, a este ou àquele indivíduo, isoladamente considerado; a esta ou àquela comunidade, modificar o actual estado do mundo, na medida em que há um conjunto de situações cuja resolução requer recursos de diversa natureza e autoridade para implementar as medidas necessárias, o que só será viável a partir da intervenção de um Estado moderno, forte e competente, na medida em que: “O Estado moderno construiu-se a partir do momento em que se tornou capaz de desempenhar uma série de funções, anteriormente distribuídas por diferentes comunidades: a função legislativa; a protecção da segurança individual e da ordem pública; a defesa dos direitos adquiridos; o cuidado com interesses sanitários, pedagógicos, políticos, sociais e económicos; a protecção contra os habitantes de outros Estados.” (LEITE, 1980: 91)
Sem se pretender defender um Estado providência, deseja-se um Estado regulador, a partir do qual as instituições funcionem livre e responsavelmente e, nesta perspectiva se podem desenvolver os vários ramos de actividade social, económica e cultural, com autonomia, competência e responsabilização.
É neste sentido que o Estado deve regular os sistemas que promovam o cidadão de forma a torná-lo o elemento fundante da sociedade contemporânea, em progressão evolutiva do aprimoramento dessa mesma sociedade, sempre em projecção para o futuro. Quaisquer que sejam tais sistemas, certamente que a educação/formação constituirá um pilar insubstituível para se atingirem aqueles objectivos. No âmbito da educação/formação é determinante o que e como se estuda, o que se pratica e como se implementam os conhecimentos na perspectiva do bem-comum.
Naturalmente que não basta um Estado regulador se a sociedade no seu todo não alterar certos procedimentos, certa mentalidade e se continuar a ignorar valores referenciais da existência humana, nas suas diversas dimensões. Poderá ser aqui a entrada das ciências sociais e humanas em geral e, especificamente, as Ciências da Educação em interdisciplinaridade com a Filosofia para, através da reflexão, se equacionarem os desafios do futuro, que são muitos e complexos. Caberá perguntar, em que poderá a Filosofia orientar? O seu contributo para a educação e formação da pessoa humana, é valorizado se for possível adaptá-la como sendo: “ um instrumento de luta e de critica contra todos os sectarismos e dogmatismos. A sua ética natural é a da amizade e do diálogo e é bom que os seus ensinamentos sejam defendidos e desenvolvidos no sistema educativo. Deveria estar presente nos estudos superiores, sejam quais forem as disciplinas.” (MALHERBE & GAUDIN, 1999: 178)
Considera-se, igualmente importante, sem menosprezo por outros domínios do conhecimento, e a par do sistema educativo nacional, um outro que, nos dias de hoje, se pretende cada vez mais interventor: alude-se aqui ao sistema político ao nível das autarquias, no que se refere à autarquia de freguesia, e dentro desta, à autarquia rural das pequenas comunidades locais. Com efeito, dada a proximidade dos eleitos com os eleitores, estes criticam e afastam-se ou aplaudem e seguem as atitudes daqueles, sempre que se joga o bem-estar de todos. A este nível, as evasivas dos responsáveis políticos locais não são fáceis
Quaisquer que sejam os domínios em que os indivíduos se movimentam, a dimensão pessoal e interrelacional do Homem estará sempre presente e não foge às normas, às regras de conduta, a determinados hábitos, costumes e tradições sociais e, do mesmo modo, acatará todo um conjunto de regulamentos profissionais que constituem o corpo de direitos e deveres laborais, incluindo-se, em quaisquer domínios, um articulado de sanções, sejam positivas, no sentido do prémio para quem cumpre; sejam negativas, aqui entendidas como punição para os que violam regras estabelecidas. Haverá, portanto, um sistema social que assenta no protocolo básico da dimensão social, que “...Nos ensina que o sistema social condiciona, modela e orienta aspectos fundamentais do comportamento e da personalidade. (...) tende a regular e orientar o comportamento de seus membros e componentes.” (ROMERO, 1998: 72)
Se se continua a reflectir sobre a existência humana, depara-se com uma teia complexa, de interdependências entre as diferentes dimensões humanas que, no homem moderno, são cada vez mais evidentes e que para o cidadão do futuro se tornam necessárias para se poder compreender o outro como um igual, no qual se possa rever como pessoa de direitos e deveres, isto é, como cidadãos do mundo. Acredita-se que este será um dos caminhos a seguir neste novo século, entre outros percursos tão interessantes quanto eficazes. Independentemente dos processos, das estratégias e dos recursos a utilizar, parece não restarem muitas dúvidas sob a urgência de formar um novo cidadão, até porque outros processos, nomeadamente bélicos, totalitários e radicais não atingiriam os objectivos que, pela via pacífica da educação e formação, se pretende defender neste trabalho, para se obterem os resultados desejados.

Bibliografia

GILES, Thomas Ransom, (1983). Filosofia da Educação, São Paulo: E.P.U. Editora Pedagógica e Universitária.
LEITE, Merian Moreira, (1980). Iniciação à História Social Contemporânea, 3. Ed., São Paulo: Editora Cultrix.
MALHERBE, Michel, e GAUDIN, Philippe, (1999). As Filosofias da Humanidade. Trad. Ana Rabaço, Lisboa: Instituto Piaget, pp. 164-170.
ROMERO, Emílio, (1998). As Dimensões da Vida Humana: Existência e Experiência, São José dos Campos: Novos Horizontes Editora.

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Portugal: http://www.caminha2000.com/ (Link Cidadania)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Comunidade Humana de Valores

A supremacia da comunidade humana justifica-se por inúmeras características, das quais e de entre outras se podem destacar: a sua organização societária; uma história construída, interpretada e reescrita ao longo do tempo; um código de comunicação, cada vez mais elaborado e diversificado, não só por diferentes idiomas, como também pelos tipos de linguagens: verbal e, ainda mais abrangentemente, não-verbal; um território físico-espacial bem definido; diversas alternativas de ocupação do tempo, nomeadamente pelos: trabalho físico e mental; lazer e descanso; devidamente estruturadas ao longo do tempo; um sistema sócio-axiológico, relativamente hierarquizado e variável, em função da cultura, das tradições, usos e costumes, de cada comunidade. Cada uma das características enumeradas comporta, em si mesma, outras variantes, instrumentos e recursos que conduzem à respectiva aplicação prática, na comunidade local e também no contexto nacional e, mais dilatadamente, ao nível internacional.
A organização societária envolve, pois, um sistema cada vez mais aperfeiçoado, e mesmo muito sofisticado, que vai desde a organização política e administrativa do espaço e das pessoas, ao estudo e utilização dos recursos naturais e humanos existentes. O sistema que faz da sociedade humana a mais avançada, pelo menos no actual estádio do conhecimento, envolve as diversas dimensões da pessoa humana: política, religiosa, social, económica, educacional, cultural, laboral, técnica, científica, comunicacional e axiológica, entre muitas outras possíveis e/ou existentes em comunidades diferentes.
O ser humano está dotado de imensas capacidades e faculdades extraordinárias como a imaginação, a criatividade e um pensamento sem fronteiras, todavia, muitos problemas persistem como os que decorrem dos conflitos, da miséria, da fome, da doença, do sofrimento, das desigualdades e da ausência de respostas para questões que continuam a atormentar a vida pessoal e comunitária, porque: “A vida já não transcorre num mundo fechado, cujo centro é o homem; o mundo é agora ilimitado e, ao mesmo tempo, ameaçador. Ao perder seu lugar fixo num mundo fechado, o homem já não possui uma resposta às perguntas sobre a significação de sua vida; o resultado disto está no fato de que agora ele é vítima da dúvida sobre si e sobre a finalidade de sua existência. Está ameaçado por forças poderosas: o capital e o mercado. Suas relações com os outros homens, agora que cada um é um competidor potencial, são superficiais e hostis; é livre, isto é, está sozinho, isolado, ameaçado por todas as partes.” (KALINA & KOVADLOFF, 1978: 56-57)
A superioridade da pessoa humana, e da comunidade em que ela se integra, comprova-se, justamente, pela sua imensa capacidade de criar, enfrentar e resolver situações, que vão do conflito e confronto, físico e armado, à invenção de soluções, recursos e técnicas para resolver ou, pelo menos, minimizar a dor e o sofrimento ou as consequências negativas de certos fenómenos naturais. A realidade que é descrita por muitos autores, numa perspectiva menos optimista e, por vezes, até com algum dramatismo, não poderá constituir razão suficiente e justificativa, de que tudo está irremediavelmente perdido, porque para além do mundo, do homem e das situações físicas e objectivamente concretas, existe a pessoa humana de sentimentos, de valores e de fé.
A pessoa humana, independentemente do seu estatuto sócio-económico, etnia, sexo, idade, religião, situação política ou orientação sexual, está capacitada para assumir-se como responsável pelos valores que manifesta, se realmente for coerente e honesta consigo própria, logo, ela sempre há-de ser detentora de alguns valores e princípios que a vão distinguir das restantes espécies animais e, inclusivamente, dos seus próprios semelhantes, porque cada pessoa será una, indivisível e infalsificável em relação a qualquer outra da sua espécie.
Neste contexto, pode-se considerar o valor como sendo uma referência, um ideal, um objectivo que se pretende atingir, porém, sem jamais conseguir alcançá-lo. Os valores são como bússolas que se destinam a orientar a pessoa e a comunidade em que se insere, em vista de um fim compatível com a dignidade humana, logo, os valores, devem ser ensinados, interiorizados e praticados desde a mais tenra idade e devem acompanhar a pessoa ao longo da sua vida.
A comunidade humana está, portanto, obrigada a desenvolver todo um sistema axiológico, para que a comunhão de valores, princípios e normas seja o mais abrangente possível, e assim poder usufruir de idênticos direitos e cumprir os inerentes deveres que cabem a cada pessoa. Precisando melhor, pretende-se a igualdade entre as pessoas e a aplicação da justiça social, considerando, naturalmente, o mérito e o demérito de cada uma, por isso se deve evidenciar a igualdade face à lei, à responsabilidade e ao esforço de cada cidadão.
No limite, importa garantir a igualdade quanto à dignidade que assiste a toda a pessoa humana, porque: “(…) a igual dignidade pessoal postula, no entanto, que se chegue a condições de vida mais humanas e justas. Com efeito, as excessivas desigualdades económicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam o escândalo e são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade de pessoa humana e, finalmente, à paz social e internacional.” (CONCÍLIO VATICANO II, 1966: 38)
Ser parte integrante, livre e responsável de uma comunidade de valores, implica não só preparação retórica, como também uma praxis rigorosa e ainda uma grande sensibilidade para assumir o exercício do cumprimento rigoroso de normas sociais elaboradas, impostas e fiscalizadas pela própria comunidade, através dos respectivos órgãos competentes, legal e legitimamente indigitados para o efeito.
O homem, na sua dimensão social, tem de viver em permanente convivencialidade e, nestas circunstâncias, ele não é totalmente livre, ficando limitado aos deveres e direitos que lhe estão consignados e que, igualmente, são atribuídos aos seus semelhantes: “O homem sozinho no universo tem liberdade total porque pode apropriar-se daquilo que tenha vontade. Porém se forem dois homens convivendo neste mesmo universo, para que haja a paz entre eles é necessário que as condutas sejam limitadas, pois o universo continua um só e cada um deles não pode pretender a apropriação de todas as coisas, sob pena de impedir a realização do outro. A limitação das condutas humanas é realizada pela própria inteligência do homem através das normas sociais.” (MARCELINO, 1987: 73)
Construir a comunidade humana de valores, com o património axiológico individual de cada pessoa, revela-se uma missão interessante e necessária, que deverá ser assumida pelos cidadãos, enquanto tais, porém, sob a orientação e coordenação de instâncias especializadas neste domínio, com recurso a profissionais das ciências humanas, em parceria com as ciências exactas e as tecnologias: ao técnico não lhe basta saber-fazer, se não souber saber-ser e estar; ao teórico ser-lhe-ia insuficiente os saberes ser e estar se não souber fazer.
A comunidade axiológica tanto carece dos valores imateriais como dos materiais. A sociedade não vive, apenas, de sentimentos altruístas, e não resistirá indefinidamente se lhe faltarem os recursos materiais, desde logo financeiros e instrumentais. A comunidade humana de valores será constituída por uma axiologia multidiversificada, adaptada a uma sociedade cada vez mais exigente, complexa e dinâmica e, nestas circunstâncias, são fundamentais os valores espirituais, sentimentais e materiais, sem quaisquer complexos nem hipocrisias.
A comunidade humana de valores será tanto mais dinâmica, justa e desenvolvida, quanto mais os cidadãos que a integram forem bem sucedidos na vida, pela aquisição e reforço dos respectivos valores imateriais e materiais. Nesse sentido: “A propriedade privada ou um certo domínio sobre os bens externos asseguram a cada um a indispensável esfera de autonomia pessoal e familiar, e devem ser considerados como que uma extensão da liberdade humana. Finalmente, como estimulam o exercício da responsabilidade, constituem uma das condições das liberdades civis.” (CONCÍLIO VATICANO II, 1966: 101

 
Bibliografia

CONCÍLIO VATICANO II (1966). Gaudium et Spes. Constituição Pastoral o Concílio Vaticano II sobre a Igreja no Mundo de Hoje. II Edição. São Paulo: Edições Paulinas
KALINA, Eduardo e KOVADLOFF, Santiago, (1978). As Ciladas da Cidade. São Paulo: Brasiliense
MACEDO, Sílvio, (1977). Curso de Filosofia Social, 2ª Edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora
MARCELINO, Nelson C., (Org). (1987). Introdução às Ciências Sociais. Campinas: Papirus


Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Portugal: http://www.caminha2000.com/ (Link Cidadania)
 

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Cidades e Vilas Comunitárias

O progresso e o desenvolvimento sustentáveis passam, necessariamente, pelo relacionamento e bem-estar das populações, analisados pela vertente positiva e numa perspectiva optimista. Na verdade, os resultados a que se tem chegado, através do engenho humano, da ciência e da técnica, podem, ainda, ser muito mais rentabilizados se a comunidade tiver condições para os usufruir plenamente, de forma equitativa e racional, para o que é essencial uma boa formação, no sentido de se entender e praticar a vida social e comunitária, com espírito humanista, democrático e solidário. Uma formação social-axiológica, implementada por uma praxis permanente, poderá, pois, constituir um dos processos que integrará um plano mais vasto de médio e longo prazos.
Será essencial a investigação científica, efectuada por investigadores motivados, reconhecidos e apoiados para exercerem a sua actividade nas melhores condições e, se possível, em exclusividade; será indispensável a participação activa e competente dos técnicos e será fundamental que a população beneficiária dos inventos e das tecnologias esteja receptiva e incluída neste grande projecto, para uma vida social em todos os contextos, sem discriminações negativas e no respeito pelas livres e responsáveis escolhas e decisões do indivíduo.
A comunidade tem de estar preparada para interiorizar e praticar normas técnico-jurídicas e regras de boa convivência social, que lhe são exigíveis pelo colectivo, isto é: “Regras e princípios que, de um ou de outro modo, a todos são impostos. Imposições com as quais todos lidam, ora acatando-as, porque crêem nos seus fundamentos jurídicos, éticos, religiosos ou associados simplesmente aos costumes, sem os quais as pessoas de qualquer comunidade crêem ser muito difícil viver. Mas imposições contra as quais os desejos da pessoa conspiram muitas vezes, o que, em boa medida, provoca a própria dinâmica da vida social.” (BRANDÃO, in MARCELINO, 1987: 44)
A organização societária vem-se alterando, desde o período medieval à contemporaneidade. A vida comunitária rural, em pequenas localidades, vem sendo substituída pela vida urbana. O burgo medieval, a paróquia, a aldeia, a vila e outras formas de divisão administrativa e territorial, cedem o seu posicionamento ordenacional-hierárquico aos grandes aglomerados urbanos, pela via do próprio crescimento ou da autodesertificação. A migração, no sentido campo-cidade, interior-litoral, continua a verificar-se e tenderá a aumentar, se não forem criadas condições de fixação das populações nas pequenas comunidades locais, desde logo com sistemas e infra-estruturas integrados de: saúde, habitação, educação, emprego, transportes e lazer.
 Conciliar os espaços rurais com os urbanos, numa perspectiva complementar, poderia ser uma solução muito boa para uma melhor qualidade de vida dos cidadãos e, nesse sentido, quem governa, certamente, terá uma responsabilidade acrescida, na medida em que, normalmente, dispõe dos recursos humanos, técnicos, financeiros e jurídico-coercivos, para proceder ao melhor reordenamento do território e ao enquadramento e contextualização das comunidades: sejam rurais ou urbanas; locais, regionais ou nacionais
A sociedade humana, diferentemente de qualquer outra, rege-se por grandes organizações sistémicas, que pressupõem um forte envolvimento dos indivíduos, mesmo enquanto isoladamente considerados, porém, integrados num todo colectivo, que reparte espaços, recursos, valores e objectivos, evidentemente, na perspectiva da maior harmonia possível.
O mundo habitável, em princípio e quanto à sua extensão física, parece ilimitado, todavia, importa que o espaço a utilizar pela humanidade proporcione qualidade de vida, nas vertentes e critérios que forem estabelecidos, democraticamente, e no superior interesse dos cidadãos, por isso: “O problema espacial do mundo contemporâneo é tão sério para a sociedade actual, que a própria geopolítica considera os grandes espaços como uma forma de poder, não só para aqueles que o possuem, mas também para aqueles povos que o exploram (…) pois as colectividades humanas, nos dias actuais, estão submetidas a sistemas de relações fixadas, não mais ao nível de pequenas comunidades locais e regionais, mas sim ao nível mundial, isto porque com os avanços da tecnologia dos sistemas de transportes e comunicações, o mundo pode ser considerado como uma grande ilha e, consequentemente, o espaço social deve ser analisado nas suas particularidades próprias e originais assim como no seu todo.” (MAYER, in MARCELINO, 1987: 91)
Melhorar e preservar a vida social das pequenas e médias comunidades, mesmo que sob diversas e complementares perspectivas: manutenção e consolidação das raízes histórico-culturais; gerontológica, formativa, turística e de lazer, obviamente, em condições dignas para os seus habitantes e visitantes, afigura-se um projecto que, depois de implementado, proporcionará uma elevada qualidade de vida, onde as pessoas se possam sentir gratificadas: quer pelo seu esforço diário, em prol de um bem-estar geral; quer enquanto forma de reconhecimento por um passado de trabalho e contributo para o bem-comum dessa mesma comunidade.
As pequenas e médias comunidades locais, cabalmente infra-estruturadas, inclusivamente, organizadas em vilas e cidades comunitárias, aqui consideradas como um novo conceito de vilas e cidades solidárias, onde a maior parte das pessoas se conhecem, interrelacionam e desenvolvem actividades culturais, de optimização das capacidades individuais, ao serviço de todos. Cidades-comunitárias com o espírito vivido na cidade da antiga Grécia clássica e democrática, naturalmente, adaptadas aos tempos modernos, porque: “(…) para os gregos, muito mais do que o lugar do trabalho, isto é, de produção, a pólis foi   o âmbito do encontro interpessoal, do diálogo e das celebrações. (…) ela pode estar referida tanto à vida comunitária em  termos políticos, culturais e morais como económicos. A pólis foi, então, o espaço por excelência da existência grega. Seus criadores a conceberam como uma comunidade de vida, baseada no parentesco real ou presumido; uma espécie de dilatada família que fazia de quase toda a existência uma experiência de intimidade. (…) Para os gregos a pólis foi um lugar essencialmente formativo, que educa a mente e o carácter dos cidadãos.” (KALINA & KOVADLOFF, 1978: 31)
Importa, pois, organizar as comunidades a partir do conceito grego da pólis, porém, adaptado à vida contemporânea, em espaços agradáveis, onde valores como: o ambiente natural, o trabalho, a educação, a segurança, a solidariedade, a interculturalidade, a ordem e o respeito sejam as directrizes, comuns a todos os cidadãos residentes e visitantes. Espaços caracterizados por uma ordem axiológico-social, instituída e praticada na vida quotidiana, cujo lema até se poderia interiorizar a exemplo do que se inscreve nos ideais brasileiros: “Ordem e Progresso”.
A criação e funcionamento de cidades e vilas comunitárias, dotadas dos meios que possibilitam uma praxis social, assente nos valores comungados por todos, a partir do respeito pelas opções individuais, parece não só pertinente, como desejável e exequível, desde que se invista em educação e formação de qualidade, para todos os cidadãos e ao longo da vida. Uma cidade e/ou vila assim constituídas, contribuiriam para que os valores já referenciados se desenvolvessem em cada cidadão, conduzindo, justamente, à satisfação, à estabilidade e ao bem-estar geral e particular, ao orgulho e auto-estima dos residentes e visitantes. Não seria a cidade perfeita de Santo Agostinho, nem será nenhuma utopia, mas revelar-se-ia de grande e positivo impacto na vida diária dos cidadãos.
Adaptar, modernizar e desenvolver as pequenas e médias localidades, dotando-as de populações estáveis e confortavelmente instaladas, poderá, num futuro próximo, ser o paradigma para a resolução de muitos problemas ambientais, sociais e de segurança, bem como um poderoso instrumento de combate à desertificação e à intranquilidade.
Institucionalizar, implementar, fiscalizar e avaliar uma nova ordem axiológico-social, poderá ser a estratégia a seguir por quem tem responsabilidades nos vários domínios e níveis da administração: política, pública e privada; religiosa, organizacional, empresarial e associativa, considerando que: “Há uma ordem axiológico-social que estabelece normas ou pautas de valorização de conduta individual, as quais não são absolutas, tendo seu valor condicionado ao grupo a que pertence. (…) porque o social é provido de uma constelação de  valores, dinâmicos, estes os únicos capazes de explicar o social. (…) A vida social é um tecido de relações complexas, cujo sentido se torna transparente aos que têm olhos de ver, os intuitivos de toda a sorte, nos planos filosófico, teológico, estético, ético, moral e jurídico.” (MACEDO, 1997: 60)
A aposta na educação, na formação e nos projectos de alta qualidade, também neste domínio, é fundamental e revela uma visão de profundo conhecimento da natureza humana, das suas necessidades e da respectiva organização societária. As cidades-comunitárias em países com grandes territórios, ou as pequenas aldeias e vilas comunitárias, nos de menor dimensão, com as características enunciadas, entre outras que, sem dúvida, se possam considerar ainda mais eficazes, constituirá, em princípio, uma boa solução para a melhoria da qualidade de vida de milhões de cidadãos em todo o mundo. Um projecto desta natureza e envergadura depende da iniciativa e vontade da maioria dos governantes, empresários e outros responsáveis pela dinâmica social.

Bibliografia

KALINA, Eduardo e KOVADLOFF, Santiago, (1978). As Ciladas da Cidade. São Paulo: Brasiliense
MACEDO, Sílvio, (1977). Curso de Filosofia Social, 2ª Edição. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora
MARCELINO, Nelson C., (Org). (1987). Introdução às Ciências Sociais. Campinas: Papirus    
                                       
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Portugal: http://www.caminha2000.com/ (Link Cidadania)

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Cooperação Universal nos Direitos Humanos

E se pela verdade de Monsieur de La Palisse, se poderia afirmar que, sem Direitos Humanos não haveria Cidadania, o oposto também se pode colocar, isto é, sem Cidadania os Direitos Humanos não existiriam. Na circunstância, a ordem dos valores, e a eventual e aparente dependência recíproca, poderá não afectar o objectivo final, que não privilegia apenas um dos elementos do binómio, mas, pelo contrário reparte-se, justamente, por aqueles valores. É evidente que se defende um cidadão no pleno uso dos seus Direitos Humanos que provieram dos direitos naturais e de todos os outros que, entretanto, foram sendo concebidos pelos homens. Cidadania e Direitos Humanos é, pois, um binómio que não se pode dissociar, sob pena de ambos os valores ficarem reduzidos aos próprios conceitos e sem qualquer eficácia e benefício para o indivíduo e para a sociedade.
Viver em Cidadania pressupõe: uma forte sensibilidade para o exercício pleno e responsável de direitos e deveres; implica uma determinação inequívoca, sem hesitações, para enfrentar as dificuldades que se deparam numa sociedade, ainda pouco preparada para estes valores; exige uma aprendizagem permanente, ao longo da vida e estabelece um conjunto de normativos, que visam o cumprimento das regras fixadas pela comunidade, seja pelo direito positivo, seja pela via consuetudinária.
A educação em geral e a educação cívica em particular desempenham, neste, como noutros domínios, um papel essencial na formação de cidadãos responsáveis, nas muitas dimensões que cada indivíduo contém em si mesmo e que exerce em situações e circunstâncias oportunas, porque: “A educação deve instrumentalizar o homem como um ser capaz de agir sobre o mundo e, ao mesmo tempo, compreender a acção exercida. A escola não é a transmissora de um ser acabado e definitivo, não devendo separar teoria e prática, educação e vida. A escola ideal não separa cultura, trabalho e educação.” (ARANHA, 1996: 52)
Os Direitos Humanos, enquanto selecção universal de valores, são necessários, ainda que: existam diferenças culturais; que num determinado país se superiorizem alguns valores de natureza mais espiritual; enquanto noutros se dê maior atenção àqueles que defendem o bem-estar social, habitacional, educação, saúde, emprego, portanto, de âmbito material, mas essenciais para a vida.
 Igualmente, eles são decisivos na construção de uma sociedade mais humana e, porventura, moderadora dos conflitos, podendo, em certas épocas e espaços, ser, também, fonte de divergências, todavia, em circunstâncias bem identificadas, precisamente porque ainda não há uniformidade na educação para os Direitos Humanos em todos os países, e muito menos exemplos concretos e permanentes de boas-práticas, por isso, todas as reflexões, divulgação e implementação destes conhecimentos nunca serão demais.
Actualmente aborda-se a educação em várias vertentes, elaboram-se conceitos, metodologias, estratégias e objectivos para a educação moral, ambiental, sexual, cívica, enfim, a educação apresenta-se, em termos de especialização, cada vez mais fragmentada, em parcelas que sendo autênticas especialidades, deixam perder de vista o todo, quando, em boa verdade, a educação para os Direitos Humanos, possibilita uma visão globalizante no que respeita à formação do cidadão, porque: “A educação em matéria de Direitos Humanos fornece o quadro de valores partilhados, onde todas as perspectivas se intersectam. Por exemplo, a educação para a paz engloba a dignidade humana e o direito à paz a segurança. A educação multicultural fundamenta-se nos princípios da não discriminação e no reconhecimento e aceitação da identidade cultural. A educação para os direitos permite aos alunos comparar os direitos do seu país com as normas internacionais de Direitos Humanos. Os Direitos Humanos contemplam todas estas dimensões!” (SELECÇÃO DE TEXTOS, in Noésis, 2000: 21)
Ignorar a Declaração Universal dos Direitos do Homem, subscrita no contexto da Organização das Nações Unidas, pelos países signatários, revela-se prejudicial para todas as dimensões da pessoa humana, para as comunidades e sociedades alargadas. Os indivíduos, as famílias, os grupos, as empresas, as organizações, quaisquer que sejam a sua: natureza, ideologia e fins, não estão dispensados, bem pelo contrário, estarão vinculados ao cumprimento daqueles valores que, supostamente, de boa-fé e com determinação de os respeitarem, assinaram tão importante documento universal, integrando, inclusivamente, o ordenamento jurídico-constitucional dos países democráticos subscritores.
O reforço dos vínculos humanitários entre países, da cooperação a vários níveis e da solidariedade entre os povos, são comportamentos que urge estimular, apoiar, substancialmente, com todos os recursos adequados, para que a teia se alargue de tal maneira que, ao fim de um determinado tempo, todas as nações se possam entender, cooperar, desenvolver e consolidar os valores universais, que a todos devem unir na paz, na justiça, no bem-estar geral de todas as pessoas sem excepção. Entre outros, um bom exemplo do que duas nações podem desenvolver, verifica-se logo nos princípios fundamentais do “Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre o Brasil e Portugal”. Com efeito, ali se pode ler: “1) O desenvolvimento económico, social e cultural, alicerçado no respeito dos direitos e liberdades fundamentais, enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no princípio da organização democrática da sociedade e do Estado, e na busca de uma maior e mais ampla justiça social; 2) O estreitamento dos vínculos entre os dois países, com vista à garantia da paz e do progresso nas relações internacionais, à luz dos objectivos e princípios consagrados na Carta das Nações Unidas;” (Artº 1º)

Bibliografia

ARANHA, Maria Lúcia Arruda, (1996). Filosofia da Educação. 2a Ed. São Paulo: Moderna.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (CF/88), in LOPES, Maurício António Ribeiro (Coord.), (1999), 4ª. Ed., revista e actualizada, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, (2004), Porto: Porto Editora.
SELECÇÃO DE TEXTOS (2000). “Educação em Matéria de Direitos Humanos”, in Noesis. Lisboa: Instituto de Inovação Educacional – Ministério da Educação, (56), Outubro-Dezembro-2000, pp.18-21
TRATADO AMIZADE E COOPERAÇÃO E CONSULTA ENTRE BRASIL E PORTUGAL, (2000), Resolução da Assembleia da República Portuguesa, nº 83/2000, Aprova para ratificação o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a Republica Federativa do Brasil, assinado em Porto Seguro, em 22 de Abril de 2000, publicado no Diário da República, I Série-A, Nº 287 de 14 de Dezembro de 2000 pp. 7172 a 7180.


Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Portugal: http://www.caminha2000.com/ (Link Cidadania)