sexta-feira, 22 de abril de 2011

A Família

Todos têm direito de constituir família e contrair casamento em condições de plena igualdade.” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, 2004: art. 36º, nº.1); e também, noutra latitude: “A família, base da sociedade, tem especial protecção do Estado. O casamento é civil e gratuita a aceleração”; (CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988: art. 226)
Este pilar insubstituível da sociedade através dos tempos, é consagrado ao mais alto nível das Constituições Políticas das nações e objecto de protecção especial. Sobre a família muito se tem reflectido, escrito, legislado e discutido. Os hinos à família ouvem-se em todo mundo, quaisquer que sejam os regimes políticos, as crenças e religiões, os valores, princípios e tradições.
Sem entrar na discussão sobre a institucionalização universal da família, que não se enquadra na investigação em curso, ainda assim, adopta-se uma posição de defesa dos valores da família, enquanto elemento fundamental da constituição de uma sociedade que se pretende equilibrada, desenvolvida e organizada, pese embora a circunstância da vida moderna não proporcionar as melhores condições para a estabilidade e longevidade das famílias, que em Portugal, se dissolvem com relativa frequência ao fim de poucos anos e com uma taxa preocupante: cerca de 50% das famílias portuguesas constituídas nos últimos anos, separou-se pelo divórcio.
As razões são várias: a começar pela impreparação de muitos cônjuges para uma vida comum, solidária, unida nas alegrias e nas tristezas, nos êxitos e nos insucessos, na abundância e na insuficiência, na riqueza e na pobreza; alguns cônjuges não querem abdicar de certos valores materiais: emprego, carreira profissional, política, conforto dos bens, independência de gostos, pensamentos e atitudes; diversos cônjuges nem sempre estão preparados para perceberem que é justamente na diferença de cada um que se enriquecem, na conjugação daquilo que de melhor cada um possui, que se complementam e se tornam mais fortes. “Por isso a família, hoje, constituída e vivida em reciprocidade privilegiada, assenta na decisão dos esposos, encontra a sua fundamentalidade radical e a sua expressão própria na construção de um projecto existencial em conjunto; em inovação permanente por explicitação das capacidades diferentes de cada um dos seus componentes.” (SANTOS & CABRAL, 1984: 1370-1378)
O papel social da família, independentemente dos modelos de sociedade em que ela se insere, é essencial na constituição de comunidades estruturadas. É no pressuposto de famílias devidamente organizadas, unidas e prósperas e adoptando valores, princípios, regras, disciplina e respeito, que no seu seio se transmitem aos mais novos. Será com tais preocupações que se desenvolve a formação de novas famílias e, pelo menos de início, se adoptem idênticas atitudes.
Numa família numerosa, a hierarquia e funcionalidade têm de ser observadas e interiorizadas, porque isso ajuda a que uma criança adquira hábitos que, mais tarde, a sociedade lhe vai exigir e que terá de respeitar. A verdade é que a família extensa, em muitos países, está a desaparecer porque o apoio oficial, ou não existe ou é insuficiente, o que pode contrariar os preceitos legais e constitucionais já citados neste trabalho, aliás: “É natural recordar que a maior atenção se há-de concentrar sobre as famílias numerosas: isenção de impostos, concessão de subsídios, pensões; mas que tudo isso se considera não como um dom exclusivamente gratuito, mas antes como uma indemnização muito modesta devido ao serviço social de primeira ordem, prestado pela família numerosa.” (WELTY, 1966: 352)
A crise profunda que actualmente atinge a família é manifesta quando e sempre que os cônjuges desperdiçam os valores e as sinergias individuais, com atitudes egocêntricas, sem tentarem todas as possibilidades e se submeterem a alguns sacrifícios, se não para bem do casal, ao menos no respeito pelos direitos dos filhos, que não pediram para nascer, mas que a partir da concepção, são pessoas com dignidade própria, e que para além dos deveres morais e paternais que, em boa consciência, os pais não podem ignorar, é a própria lei fundamental que impõe especial protecção aos filhos: “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, 2004: art. 36º, nº. 5) e, noutro quadrante geográfico: “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer (…) à dignidade, ao respeito, à convivência familiar…” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, CF/88, art. 227º.)
Decididamente e sem ambiguidade, a família é, indiscutivelmente, um valor, uma organização, um bem universal que é preciso: proteger e estimular; apoiar e reconhecer, como parte fundante da sociedade. Com este conceito e espírito plenamente convicto do valor e imprescindibilidade da família, o cidadão todo o cidadão, axiologicamente bem formado, tudo fará para a enaltecer e preservá-la e, nesse sentido, ele será o primeiro a dar o exemplo, respeitando, obviamente, as suas legítimas opções, a constituir uma família natural, no respeito pelas leis da natureza, dos homens e de Deus. Este novo cidadão, assumirá as responsabilidades do cônjuge moderno, defensor dos valores mais profundos da família, envolvendo-se na realização dos seus objectivos e procurando sempre melhorar as condições de vida do agregado familiar.

Bibliografia

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (CF/88), in LOPES, Maurício António Ribeiro (Coord.), (1999), 4ª. Ed., revista e actualizada, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, (2004), Versão de 2004. Porto: Porto Editora
SANTOS, A. Miranda e CABRAL, Roque, (1984). “Família”, in Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Antropologia, Economia, Ciência Política, Lisboa, São Paulo: Editorial Verbo, 1370-1378
WELTY, Eberhard, (1966). Manual de Ética Social III – O Trabalho e a Propriedade, Trad. José da Silva Marques, Lisboa: Editorial Aster. Pp. 33-74

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Portugal: http://www.caminha2000.com/ (Link Cidadania)

domingo, 17 de abril de 2011

O Direito na Reconciliação Cultural

No Estado Democrático, o instrumento fundamental, regulador dos grandes valores, princípios e orientações sobre direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, é a Constituição política da nação, porque segundo Habermas: “A constituição oferece, precisamente, os direitos que estes indivíduos devem garantir uns aos outros se querem ordenar a sua vida juntos recorrendo, legitimamente à lei.” (in TAYLOR, 1998: 125)
Acontece que: por um lado, a lei natural consagra um conjunto de princípios superiores, justos e verdadeiros, com validade eterna e universal e que modernamente constitui o corpo de direito natural, cuja construção, possivelmente das mais antigas, teria sido cristã, no sentido em que o direito deriva de Deus, da vontade divina; no entanto, por outro lado, não se pode ignorar o direito na perspectiva individualista, do interesse das pessoas, dos sujeitos, logo, direito subjectivo, que se traduz numa situação de vantagem em que os outros não podem estorvar ou impedir que o titular deste ou daquele direito subjectivo o goze: “O reconhecimento das formas culturais da vida e das tradições que foram marginalizadas, quer num contexto de uma cultura maioritária quer numa sociedade eurocêntrica global, não exige garantias de estatuto de sobrevivência?” (IBID., 126)
Levanta-se aqui uma questão, que é a que se prende com a protecção das identidades colectivas e o direito às liberdades individuais, ou seja, qual o reconhecimento que deve prevalecer ou superiorizar-se: o direito das maiorias, fundado no direito positivo ou o direito das minorias, com suporte no direito subjectivo?
Taylor acrescenta que “... O princípio dos direitos iguais tem que ser posto em prática através de dois tipos de política que vão ao encontro um do outro – uma política de consideração pelas diferentes culturas, por um lado, e uma política para universalizar os direitos individuais, por outro. Uma é suposta compensar o preço que a outra exige com o seu universalismo igualitário.” (1998:129)
E se por um lado, uma teoria dos direitos não é totalmente cega às diferenças culturais, por outro lado, em caso de conflito o tribunal decide a quem pertencem determinados direitos básicos e, desta forma, o princípio de respeito igual para todas as pessoas seria válido apenas na forma de uma autonomia legalmente protegida.
Habermas considera que esta forma, legalmente válida de direitos, é paternalista, porque ignora metade do conceito de autonomia, ou seja, deixa de fora aqueles a quem a lei se dirige para poderem adquirir autonomia, porque: “Uma teoria dos direitos correctamente entendida exige uma política de reconhecimento que proteja a integridade do indivíduo nos contextos de vida nos quais a sua identidade se forma. (in TAYLOR, 1998:131)
Quaisquer que possam ser as hipóteses de soluções provisórias para determinar quais os interesses que devem prevalecer uns em relação aos outros, o que o mundo vem assistindo é a uma explosão de autodeterminação dos povos, através das vias bélicas o que, em boa verdade, leva ao sofrimento daqueles a quem os estados, constitucionalmente democráticos, pretendem ver livres mas que, por interesses de ordem económico-estratégica, nem sempre exercem a influência forte e inequívoca junto dos opressores: a) A luta pelo reconhecimento à autodeterminação dos timorenses desenrolou-se durante algumas décadas! Porquê? Interesses económicos se sobrepuseram aos direitos humanos daquele povo; B) a luta pelo reconhecimento de uma cultura diferente do povo de Barrancos, não é recente!
O que se pode fazer num Estado de Direito Democrático, sem que com isso se criem expectativas e/ou frustrações em situações idênticas num mesmo país? c) E que dizer da marginalização, mais ou menos envergonhada, imposta por alguma sociedade portuguesa, às minorias étnicas a viver em Portugal: africanos, ciganos; ou doutras minorias: sexuais, sociais, culturais, profissionais, feministas, excluídos, marginalizados politico-idiologicamente e tantos outros:
“O feminismo radical insiste correctamente que a relevância nas diferenças, nas experiências e nas circunstâncias da vida dos grupos específicos de homens e das mulheres relativamente à oportunidade igual de exercerem liberdades individuais deve ser discutida na esfera política pública (...) esta luta pela igualdade das mulheres é uma ilustração particularmente boa da necessidade de uma mudança no entendimento paradigmático dos direitos.” (IBID., 135).
Chegados aqui, há que pensar, globalmente, no sentido de se caminhar para uma universalização de direitos, liberdades e garantias. Acresce a importância da diversidade cultural que, quer num contexto cosmopolita, quer ao nível mais restrito da pequena comunidade e no respeito da especificidade cultural de cada povo, nunca se deverá impor a segregação de quaisquer etnias minoritárias, pela comunidade dominante.

Bibliografia

BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2002). “Silvestre Pinheiro Ferreira: Paladino dos Direitos Humanos no Espaço Luso-Brasileiro” Dissertação de Mestrado, Braga: Universidade do Minho.
BARTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2009). Filosofia Social e Política, Especialização: Cidadania Luso-Brasileira, Direitos Humanos e Relações Interpessoais, Tese de Doutoramento, Bahia/Brasil: FATECTA – Faculdade Teológica e Cultural da Bahia - Brasil
TAYLOR, Charles. (1998). Multiculturalismo, Trad. Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
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domingo, 10 de abril de 2011

Filosofia dos Direitos, da Cidadania e da Ciência

“(…) A cidadania é uma coisa frágil, prejudicada por todas as desigualdades e divergências de interesses. (…) A nossa paixão pela igualdade conduz-nos, desde há dois séculos, na busca dos meios para passar da igualdade de direito à igualdade de facto.” (MADEC & MURARD, 1995: 96)
Preocupar-se-á a ciência, no seu conceito mais dogmático, com as questões da cidadania, da solidariedade, dos direitos humanos e com outros valores universais? Ou pelo contrário, tais assuntos não interessam à ciência em geral e aos cientistas em particular?
Nesta perspectiva parece que a questão é pertinente porque se vive numa sociedade ainda muito afectada por um certo positivismo técnico-científico, difícil, complexa, em busca da satisfação pessoal, da multiplicação de experiências, da exploração do negativo, do espectacular, do sensacional, do escandaloso, o que poderá conduzir a uma certa desmoralização da vida pública e que se relaciona com a tentativa, sistematicamente organizada de, se não eliminar, pelo menos substituir os conteúdos substantivos, morais e éticos, valores orientadores devidamente ajustados à prática.
Decidir realizar uma investigação sobre a necessidade imperiosa, de desencadear os mecanismos legais e académicos de sensibilização das consciências para o cumprimento dos deveres e direitos humanos, num ambiente de cidadania responsável, implica estar disponível para as dificuldades que o tema pressupõe, agravadas pela circunstância especial de: enquanto cidadão, no pleno exercício de actividades cívicas, se ter a obrigação de reflectir sobre estes temas, portanto, seria inadmissível qualquer tipo de fuga a mais este esforço.
De uma forma simples, cientificamente descomplexada, torna-se pertinente mencionar alguns aspectos de uma das dimensões mais nobres da humanidade que é a que se prende com a educação e, dentro desta, o contributo da filosofia e das ciências da educação, a partir do último quarto do século XVIII, centrando toda a atenção no século XIX, e culminando com uma breve referência aos programas actuais de Filosofia, na perspectiva da divulgação e sensibilização para o estudo e prática de uma cidadania dos direitos e deveres humanos, precisamente, por ser um tema que: por um lado, preocupa a maioria dos cidadãos; por outro lado, indubitavelmente, também incomodará as consciências de muitas individualidades mundialmente bem posicionadas nos aparelhos do poder.
Assim, a “caminhada” iniciar-se-á a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 que influenciou, decisivamente, a Constituição Francesa de 1791, passando pela análise do Direito Natural, inserto no Curso Elementar de Philosofia de 1866, terminando com uma breve referência ao ensino e/ou estudo dos Direitos Humanos. (cf. COSTA, 1866)
A oportunidade para convocarmos, uma vez mais, o conhecimento filosófico, no seu contexto histórico-político e educacional e também no sentido da reflexão, que possa conduzir a resultados objectivos, no que concerne à implementação das boas-práticas de cidadania, finalidade última do presente trabalho.

Bibliografia

BÁRTOLO, Diamantino Lourenço Rodrigues de, (2002). “Silvestre Pinheiro Ferreira: Paladino dos Direitos Humanos no Espaço Luso-Brasileiro” Dissertação de Mestrado, Braga: Universidade do Minho, Lisboa: Biblioteca Nacional, CDU: 1Ferreira, Silvestre Pinheiro (043), 342.7 (043). (Publicada em artigos, 2008, www.caminha2000.com inJornal Digital “Caminha2000 – link Tribuna”);
COSTA, António Ribeiro da, (1866). Curso Elementar de Philosophia. 2a Ed. Porto: Typographia de António J. S. Teixeira.
MADEC, Annick; MURARD Numa, (1995). Cidadania e Políticas Sociais, Trad. Maria de Leiria. Lisboa: Instituto Piaget

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
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sábado, 2 de abril de 2011

Gratidão: Virtude que Gera Amizade e Paz

Conceptualizar a gratidão como um sentimento, uma virtude, um valor social, um traço da personalidade, uma característica da educação ou uma atitude de reconhecimento por um bem recebido, poderá ter interesse na perspectiva argumentativa, no plano teórico da construção de uma tese, no âmbito da demonstração de boas maneiras.
O essencial, porém, poderá ser abordado no plano prático, pela revelação de comportamentos coerentes e permanentes, de reverência e humildade, perante quem e/ou a quem se presta ou deve gratidão, independentemente do tempo, do espaço e das circunstâncias em que se recebeu o benefício, posterior e definitivamente, objecto de gratidão.
Tão importante quanto o conceito teórico será, porventura, a conduta prática de quem é grato ou ingrato. Actualmente, valores desta natureza ou, se se preferir, princípios que se adoptam para manifestar certo tipo de posições, face ao outro, ao grupo ou à instituição, de que se recebe uma atenção, um apoio, um bem, escasseiam, cada vez mais, na sociedade de consumo, do ter, do conseguir algo, do atingir fins sem se olhar a meios.
O exercício de um qualquer poder, enquanto permite a quem o detém, auxiliar aqueles que precisam resolver diversas situações, serve, exemplarmente, para se desenvolver o tema da gratidão e/ou, pela negativa, ingratidão. Na verdade, enquanto as pessoas beneficiam de alguém que tem poder, seja de decisão, de influência ou outro, aparentemente, (por vezes, fingidamente) demonstram algum tipo de gratidão, pelo menos enquanto têm problemas que podem ser resolvidos por quem detém o poder, ou pode influenciar numa decisão favorável.
Resolvida a situação, ou não havendo mais condições para o exercício do poder, passa-se a um afastamento gradual, à indiferença, ao esquecimento, aquele que numa determinada época tinha poder, ajudava, resolvia, influenciava. Vive-se o oportunismo de cada momento, extrai-se o máximo de benefício e depois segue-se o longo período de ostracismo, porém, em muitos casos, até se invertem os papéis e surge, agora, a situação mais censurável: o que foi ajudado e agora pode ajudar quem o ajudou, pura e simplesmente, ignora e não retribui os benefícios que antes recebeu de quem agora precisa de apoio, solidariedade, compreensão, uma “mãozinha”, como diria a sabedoria popular, a voz do povo.
Reflectir sobre esta realidade é o objecto do presente trabalho que, partindo de alguns conceitos, várias situações, facilmente identificáveis na sociedade, se demonstrará que, sendo a gratidão um valor, um sentimento, uma atitude, ela, a gratidão, deve fazer parte da educação/formação da pessoa humana, porque, qualquer que seja o conceito, é fundamental que na prática, em todas as circunstâncias, as pessoas não tenham preconceitos em manifestá-la, em público ou em privado, demonstrá-la, sincera e entusiasticamente. Adoptar uma conduta de gratidão acaba por ser gratificante para quem a recebe e para quem a manifesta, trata-se de uma atitude nobre, de humildade e elevada dignidade, que só engrandece quem a pratica verdadeira e genuinamente.
As causas que, eventualmente, possam estar na origem de atitudes e comportamentos ingratos, acredita-se que sejam de natureza diversa que, independentemente dos motivos, não justificam os procedimentos característicos da ingratidão: insensibilidade para reconhecer um benefício recebido, por quem não tinha o dever de o fornecer?
Falta de humildade, em certo tipo de personalidade? Esquecimento, puro e simples, de agradecer um bem recebido? Ausência do hábito de agradecer àqueles que praticam o bem em benefício concreto de outros? Falta de educação para agradecer um simples favor? Vergonha de manifestar comportamentos gratos e actos de gratidão? Possivelmente, outros motivos se poderiam invocar para as atitudes e comportamentos ingratos, ou pelo menos de não-gratidão, todavia, o facto é que ela, a ingratidão, existe, se manifesta e, quantas vezes, magoa e ofende, justamente quem deveria receber o reconhecimento, um simples obrigado.
O mundo actual, na sua dinâmica globalizante, provoca comportamentos individuais e colectivos que cada vez mais se afastam dos mais elementares valores da gentileza, da humildade e da gratidão. Quantas vezes o favor é negociado, pela troca por outro favor, por outro benefício ou por um outro valor material concreto. A troca de favores, de influências, de cargos e posições sócio-estatutárias torna-se uma prática quase corrente e, na formação dos respectivos intervenientes. Formação e educação para valores desta natureza, boas-práticas na e/a partir da família ou de grupos de amigos e comunidades mais restritas, parece não existirem, pelo menos de forma evidente e abundante.
Gratidão, gentileza, humildade serão conhecimentos, práticas, princípios, valores, deveres ou quaisquer outras designações que, na mentalidade de quem não os pratica, possivelmente não se enquadram num saber-fazer que proporciona lucros, dividendos materiais em numerário ou de natureza ainda mais substantiva. Como se chega a esta insensibilidade é uma questão que se compreende cada vez mais nitidamente, pelas razões já apontadas, entre outras, eventualmente, ainda mais graves.
A acentuar-se esta insensibilidade, face ao sentimento de gratidão, caminha-se para situações que se podem tornar causadoras de maiores desigualdades. Quem não tem poderes para retribuir com um favor outro favor recebido, possivelmente não receberá qualquer apoio, benefício e compreensão de quem o pode fornecer, se souber que em troca apenas recebe, quando recebe, um “muito obrigado”.
Agradecer o recebimento de um benefício, uma ajuda, uma solidariedade, apenas com sentimentos de gratidão, de uma atitude de humilde reconhecimento, pode significar nunca mais se ter apoio daquela pessoa que foi objecto de gratidão por palavras, por sentimentos e atitudes de admiração e gestos gratos. A gentileza, a cordialidade, a boa educação, traduzidas por palavras e gestos simbólicos, embora significantes, parece que já não satisfazem muitos daqueles que esperam agradecimentos mais concretos e objectivos, susceptíveis de uma determinada quantificação.
São múltiplas, profundas e sofisticadas as causas da ingratidão que se alastram, silenciosamente, na sociedade: múltiplas, porque envolvem vertentes que vão da desvalorização de valores essenciais, abstractos e simbólicos à insuficiência da preparação, educação e formação das pessoas; profundas, porque vêm minando os princípios mais elementares que sustentam a amizade, a solidariedade e a compreensão, materializando tudo, a partir de conceitos e comportamentos que, em muitos casos, são fomentados nas instituições que, num passado recente, mereciam a maior credibilidade e respeito: família, escola, empresas; sofisticadas, porque, sub-repticiamente, e com a hipocrisia de aparente humildade se insinua uma prática de troca de favores, influências e até mesmo a compra de tais benefícios e apoios, isto é, diz-se um muito obrigado mas… fica a insinuação de que isso é muito pouco para agradecer o bem recebido por favor, às vezes com amizade de quem o fornece.
Ao longo da vida de cada pessoa e quando esta já viveu algumas décadas, acontecem situações que comprovam tanto os actos de generosidade, de solidariedade, de favores, como os que se lhes seguem de reconhecimento, agradecimento ou ingratidão. Toda a pessoa tem destas experiências e quando se verificam mais casos de ingratidão, para com a mesma pessoa, esta terá uma tendência natural para se tornar menos sensível a praticar determinadas atitudes, que conduzem às boas-práticas e à disponibilização para fazer o bem, ouvindo-se, frequentemente, lamentos e críticas, no sentido de que, afinal, não é estimulante praticar boas acções, fazer favores, ajudar, porque ninguém reconhece nem agradece nada.
Apesar de situações e comportamentos destes, ainda existe muita solidariedade, principalmente em situações-limite ou de extrema fragilidade e quando intervêm órgãos de comunicação social ou instituições de solidariedade social. Nestas circunstâncias, surgem, de facto, os benfeitores que sem esperarem qualquer acto de gratidão ajudam, generosamente, quem está a passar por grandes dificuldades.
O humanismo que permanece em muitas pessoas pode ser a base de partida para a criação de grandes movimentos e instituições de solidariedade que, simultaneamente, espalham o bem e transmitem a ideia de gratidão para com aqueles que participam nestas instituições, isto é, benfeitores que se solidarizam para com uma situação, uma causa, uma iniciativa humanitária e altruísta, se se sentirem alvo de gratidão dessa instituição, os beneficiários que, posteriormente, vierem a ser contemplados pela mesma instituição, sentir-se-ão na obrigação de manifestarem gratidão e reconhecimento públicos. Talvez se gere uma cadeia de solidariedades e gratidões que, dentro de algum tempo, todos possam manifestar esse sentimento tão nobre, quanto humilde.
As causas da ingratidão podem, pois, (e devem) ser combatidas a partir da interiorização de valores e princípios que suportem e justifiquem, justamente, comportamentos e atitudes gratas. Ensinar, no sentido de adquirir conhecimentos e avaliá-los, esta virtude que é a gratidão, não se afigura tarefa fácil; transmitir, por actos, palavras e exemplos concretos, boas-práticas de gratidão e sensibilizar crianças, jovens e adultos para o cultivo de permanente atitude de gratidão, afigura-se possível, na família, na escola, na igreja, na comunidade.
É óbvio que o saber-fazer é fundamental, imprescindível, à existência humana condigna, essencial à sobrevivência material de cada pessoa, de cada família, de cada instituição, de cada nação. É indiscutível que a Ciência e a Técnica contribuem para a melhoria da qualidade e nível de vida das pessoas. É inegável que sem a evolução do saber-fazer o mundo não seria o que hoje é, o desenvolvimento não teria ocorrido, pelo menos com a qualidade e quantidade que actualmente se verifica.
Mas o saber-fazer, por si só, não justifica nenhum tipo de supremacia face a outras dimensões e actividades humanas, tais como o saber-ser, o saber-estar e o saber-conviver e relacionar-se com os outros. Pequenos pormenores, para alguns, podem estabelecer a diferença entre uma sociedade composta por pessoas com formação integral e uma sociedade de tecnocratas, de homens-máquinas, de pessoas inumanas. São pois as dimensões axiológicas, dos valores ético-morais, das atitudes gentis e cordiais, (porém sinceras e não de relacionamentos oportunistas, só para se estar de bem com todos), que dão sentido à vida de cada um, independentemente do seu estatuto sócio-profissional, académico-cultural e outros.
Pretende-se que esta abordagem seja pacífica porque é inofensiva nos seus objectivos e estratégias. Deseja-se que se aceite a gratidão sob a perspectiva de uma virtude que pode (e deve) ser cultivada, aperfeiçoada e aplicada ao longo da vida, mas também que é susceptível de ser dinamizada em quaisquer instituições e em diversas circunstâncias em geral, porém, mais particular e estruturadamente, no seio da família, com a implementação de práticas adequadas e no contexto escolar, em domínios como o Desenvolvimento Pessoal e Social, Cidadania e Mundo Actual, Psicologia das Relações Humanas, Comunicação e Relacionamento Interpessoal e, também, numa invocação mais genérica, em quaisquer outras disciplinas e domínios escolares, em todos os níveis de ensino e formação profissional. Mas estas não são as únicas estratégias e pedagogia cognitiva, para estimular e criar boas-práticas de gratidão.
Antes, durante e depois da escola está a Família que não utilizando métodos pedagógicos estritamente cognitivos, recorre, sistematicamente, à transmissão de conhecimentos e boas práticas, pelo exemplo dos seus membros mais velhos e que os mais novos apreendem por imitação. Pensa-se que esta pedagogia não cognitiva, nem intelectualizada, pode produzir resultados objectivos espantosos, porque a criança, o adolescente e o jovem transportam, desde que tenham participado nas boas-práticas da família, todos os valores, direitos, deveres e virtudes que nela vão observando nas pessoas dos seus pais, avós e outros familiares mais idosos.
A virtude da gratidão deve ser uma prerrogativa marcante, da família bem estruturada, na personalidade de cada um dos seus membros. Aliás, como deverá acontecer em relação a todo o processo de socialização, em todas as suas vertentes e fases que conduzem à boa e plena integração do indivíduo humano na sociedade.
Gestos tão simples como o marido agradecer à esposa uma pequena atenção, um sorriso terno, confiante e amoroso, um olhar embevecido para o seu companheiro e vice-versa, constituem motivos suficientes para o outro cônjuge revelar gratidão, desde logo, retribuindo com idêntica espontaneidade, sinceridade e amor.
Atitudes tão bonitas e simples como dizer ao pai ou à mãe um “muito obrigado” por algo que se recebeu, um gesto mais íntimo e profundo, traduzido num beijo carinhoso, um comportamento que orgulhe o familiar objecto de atenção especial, são atitudes que manifestam gratidão, reconhecimento, estima e amor, seja dos filhos para com os pais e/ou destes para com aqueles. São estas pequenas gentilezas, amabilidades sinceras, genuínas e inesquecíveis que vão criando no espírito da criança, do adolescente, do jovem e do adulto, sentimentos e virtudes que facilitam a harmonia familiar e, mais tarde, as relações sociais na vida pública.
Utiliza-se, frequentemente, a expressão “gratidão eterna”, pretendendo-se significar um agradecimento para toda a vida, porém, não basta utilizá-la uma vez e não a praticar posteriormente, porque se assim acontecer, entra-se no âmbito da “gratidão de oportunidade”.
 Será mais correcto, verdadeiro e gratificante, manifestar essa gratidão ao longo da vida, sempre que as circunstâncias o aconselhem, como por exemplo para elogiar a pessoa que é objecto da gratidão de outra, naturalmente, com total honestidade de consciência e prazer em revelar, essa gratidão.
Não ofenderá os princípios do gesto gratificante quando o beneficiário de um favor, de uma atenção, de uma atitude de solidariedade, agradecer e manifestar, assim, a sua gratidão, justamente, na mesma medida e natureza do bem recebido, desde que não exista qualquer imposição ou acordo prévio, porque então, nestas circunstâncias, deixa de ser gratidão para passar a ser uma troca, um pagamento de benefícios, favores ou influências, um negócio.
A nobreza de tão distinta virtude, como de outras como tais consideradas: respeitabilidade, humildade, consideração, lealdade, solidariedade, consiste na sua espontaneidade, sinceridade, sem condições prévias para as expressar, como por exemplo: uma pessoa consegue um emprego para o filho de um seu amigo; este, por sua vez, pode manifestar-lhe gratidão, nos mesmos moldes ou simplesmente agradecer-lhe com um presente físico, uma prenda material que entender ser do gosto do amigo, partindo do princípio que não houve, previamente, nenhuma exigência, acordo, pacto ou qualquer outra condicionante, sem a satisfação da qual, não haveria a concretização dos benefícios recebidos e desta forma pagos. Cada um é livre de agradecer utilizando os recursos e/ou as atitudes que considerar compatíveis e justas com o apoio recebido.
Quem presta gratidão a outrem é porque recebeu algum bem dessa outra pessoa, sob qualquer forma: uma palavra amiga, um gesto de solidariedade, um favor, uma influência para resolver uma situação, enfim, um benefício material ou imaterial; uma atenção que veio ajudar numa qualquer situação, sem a qual, a resolução desta, não seria tão favorável ou nem se teria alcançado. A pessoa grata sente-se de bem consigo própria e com aquela a quem agradece, o que causa em ambas uma sensação de bem-estar, de tranquilidade e do dever cumprido, a gratidão pode, inclusivamente, gerar a amizade.
Por outro lado, a pessoa que pratica acções, que disponibiliza apoios que conduzem à resolução de problemas de um seu semelhante, igualmente se vai sentindo realizada e bem relacionada com aqueles a quem presta atenção. Entre tais pessoas criam-se uns laços de empatia e sentimentos de amizade sincera e profunda, que se vão fortalecendo e consolidando, num relacionamento verdadeiro, desinteressado e sempre renovado, sem condições prévias nem objectivos inconfessáveis.
Partindo-se do princípio genérico de que a pessoa humana não tem capacidade para viver isoladamente, porque sempre necessita de outras pessoas, de bens que a natureza produz, sem os quais a vida seria impossível, então cada pessoa deverá sentir-se grata a outras pessoas e à própria natureza o que faz criar um circulo vicioso de interdependências e, correlativamente, de gratidões. Manter dinâmico e profundo um tal círculo, ou cadeia de amizades, pela via da gratidão, proporcionará, certamente, uma sociedade mais humana, mais tranquila e, naturalmente, feliz.
Hoje ninguém se pode arrogar o direito de afirmar e demonstrar que é totalmente autónomo, que não precisa de ninguém: o rico precisa do pobre; o especialista necessita do indiferenciado; o crente em algo que acredite; homem carece da mulher; em todos os binómios, cada um só se justifica pelo outro. Vive-se um mundo de interdependências e já se tem assistido à queda dos mais poderosos, perante aqueles que antes e por vezes longamente, humilharam, maltrataram e prejudicaram.
A gratidão é, portanto, um sentimento que se funda na virtude do reconhecimento, da homenagem e da amizade. Quem é objecto de gratidão é porque: primeiro, procedeu para com outrem de forma excepcional, a que, eventualmente, nem estaria obrigado a tal, então, o beneficiário da atenção recebida sente-se como que realizado na sua capacidade de agradecer, quando manifestar gratidão, ao ponto de o fazer com um misto de amizade, orgulho e admiração; depois, entre as pessoas envolvidas, estabelece-se, de ora em diante, como que um cordão umbilical duradoiro, pelo qual circulará uma amizade e benquerença que, obviamente, conduz a uma maior harmonia, tranquilidade e realização pessoal. A gratidão não humilha, nem minimiza quem a manifesta, pelo contrário, enobrece e dignifica a pessoa que sabe ser grata.

Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Portugal: http://www.caminha2000.com/ (Link Cidadania)